O que a nova classe média, um banco público e a Bolsa de Valores têm a ver com os rumos do SUS? Afinal, qual é o papel do setor privado na prestação de assistência à saúde no Brasil? Hoje, pode-se fazer uma distinção clara entre o que é interesse público na área da saúde e o que é interesse privado? Como o processo de financeirização da economia afeta o chamado “mercado da saúde”? E a regulação, o que pode fazer diante desse novo cenário? Colocadas dessa forma, a relação entre as perguntas acima pode não ser muito clara em um primeiro momento. Entretanto, os questionamentos fazem parte da complexa teia de fatores que estão em jogo para a efetivação (ou enfraquecimento) da noção ampliada de saúde presente no SUS constitucional, aquele sistema sonhado por militantes da Reforma Sanitária como um direito de todos.
Se dependesse apenas da Constituição brasileira, a resposta para a primeira pergunta poderia ser dada sem maiores dificuldades. O texto é bastante claro quando determina que se “a assistência à saúde é livre à iniciativa privada”, o papel desse setor deve ser complementar ao SUS e segundo as diretrizes deste. No entanto, a realidade diz outra coisa. Em 2011, 47 milhões de pessoas buscaram a saúde privada, de acordo com dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). No mesmo ano, o setor movimentou cerca de R$ 80 bilhões, enquanto o orçamento da União para a saúde ficou em R$ 72 bi.
Insatisfação com o SUS
A combinação do aumento de postos de emprego com carteira assinada, facilidade no acesso ao crédito e ganhos reais no salário mínimo é apontada como responsável pela incorporação de um segmento mensurado em 30 milhões de pessoas em nichos de mercado antes exclusivos da classe média, caso dos planos e seguros de saúde. Pesquisa do instituto Data Popular encomendada pelo jornal Valor Econômico este ano estima que 4,4 milhões de pessoas da classe D já possuam esse tipo de plano. E há para onde crescer, já que esse número corresponde a apenas 9,3% do total residente em cidades.
Apagão
A frustração com os planos e seguros vem sendo mensurada pela ANS. Cerca de 20 milhões de brasileiros têm planos de saúde considerados ruins ou medianos, fatia que representa nada menos do que 45% dos usuários de planos de saúde no país. Pesquisa encomendada pelo Conselho de Medicina ao Datafolha no ano passado aponta que 58% dos usuários dos planos de saúde vivenciaram alguma situação negativa com o atendimento das operadoras no período de um ano. As reclamações mais recorrentes envolvem fila de espera e demora no atendimento em pronto-socorro, laboratórios e clínicas (26%). Também é alvo de críticas a pouca variedade de médicos, hospitais e laboratórios (21%). Dos entrevistados na pesquisa, 19% relataram dificuldade em marcar consulta e 18% se sentiram prejudicados com o descredenciamento do médico procurado. Quatorze por cento dos usuários relataram que precisaram recorrer ao SUS por terem atendimento negado pelas empresas. “É um engodo achar que a assistência suplementar é um paraíso. A falta de regulação, as brechas, as inúmeras restrições de atendimento, as negações de cobertura, empurram as pessoas de novo para o sistema público. Tudo aquilo que é caro, complexo, os idosos, os doentes, os desempregados, enfim, tudo o que não dá lucro retorna para o SUS”, enfatiza Scheffer.
Banco público, saúde privada
A entrada do banco, mesmo que indiretamente, no mercado de planos e seguros de saúde privados teve repercussão escassa até agora. O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) foi uma das poucas entidades a se manifestar publicamente sobre o caso. Em fevereiro, publicou em seu site a nota ‘Caixa Econômica Federal contra o direito à saúde’ em que questionava: “Se a saúde é, de fato, prioridade do Governo, esta prioridade deve se expressar, também, nas medidas do conjunto das instituições estatais”, lamentando, por fim: “Enquanto a correlação das forças políticas for favorável ao capital financeiro não há por que estranhar notícias como essa”.
“A decisão da Caixa é uma aposta na contramão da construção de um sistema público. Isso não condiz com a história de um banco público orientado para o desenvolvimento não só econômico, mas social do país. Como instituição voltada para a efetivação de programas sociais e direitos dos trabalhadores, há um significado muito forte quando a Caixa aposta na falência do SUS para fazer negócios”, avalia Scheffer. De acordo com ele, a iniciativa da Caixa diz muito sobre o futuro papel da saúde suplementar no sistema brasileiro e, consequentemente, sobre o futuro do próprio SUS. “Nós queremos esse subsistema como complementar ao sistema público ou a política é transformá-lo na cobertura principal de grupos cada vez maiores da população? Assegurar a perenidade do SUS vai depender muito de como os recursos do crescimento econômico vão circular no sistema de saúde. Qual será o destino da nossa riqueza coletiva? Parece que há uma determinação política para que ela se desloque para as despesas privadas e para o setor privado”, acrescenta.
Silêncio
Procurada para comentar a posição do banco, a presidente do Cebes, Ana Costa, questiona: “A Caixa deveria responder. Eticamente porque é um banco público, que deveria preservar o interesse público e as bases da Constituição brasileira e politicamente porque é uma instituição vinculada a um governo que deve defender o interesse público”. Ana analisa que a entrada da Caixa se soma a outros elementos que corroboram “a aposta no fracasso do SUS”. “A Receita Federal também aposta no fracasso quando promove a renúncia fiscal do pagamento da saúde privada. Isso é um contrassenso, uma política na contramão da Constituição, que não fala em privilegiar o setor privado. Mas o que está acontecendo é o contrário. O setor privado hoje regula o setor público até determinando onde ele deve se estabelecer e onde deve ser subtraído”.
Público x Privado
A compradora das ações da Funcef foi a empresa francesa CNP Assurances, que continua sendo acionista majoritária da Caixa Seguros. A transação aconteceu em fevereiro de 2001, alcançando o preço de R$ 1,065 bilhão. Na época, a Federação Nacional dos Advogados do Pessoal da Caixa Econômica Federal e o Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região questionaram a transação na Justiça Federal, alegando que a Sasse pertencia à Funcef e, por isso, era indiretamente controlada pela União. A venda da Sasse, portanto, deveria cumprir os procedimentos de uma privatização. Mas prevaleceu o entendimento de que o fundo de pensão não era estatal. Por fim, não precisou haver um leilão e o banco público passou a ter como sócia a empresa francesa.
De acordo com dados disponíveis no site da ANS, em fevereiro, a seguradora tinha 3.383 beneficiários. No mesmo mês, uma matéria do Valor Econômico ouviu fontes oficiais e divulgou que o objetivo da empresa era chegar a 2015 com meio milhão de beneficiários. Como operadora médico-hospitalar, a Caixa Seguros Saúde comercializa seguros de saúde na segmentação de assistência médica somente para pessoas jurídicas, incluindo pequenas, médias e grandes empresas. Na segmentação odontológica, os produtos são vendidos também para pessoas físicas. A venda dos seguros está intimamente ligada à estrutura operacional da Caixa Econômica. Os gerentes das agências do banco público são incentivados a ofertar os seguros para os clientes.
“A Petrobrás é uma empresa pública, com participação de capital público, mas, ainda sim, ela é por definição uma empresa. O governo é o maior detentor de ações da Petrobrás? Sim, mas isso faz parte do nosso modelo de capitalismo, em que o governo é parceiro de empresas privadas em vários negócios. E essas organizações, como os bancos públicos e a Petrobrás, se comportam como as outras empresas se comportam no mercado”, situa Maria Angélica Borges dos Santos, pesquisadora da Escola de Governo em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz).
Financeirização
A Caixa Seguros Saúde tem o controle dividido pela Caixa Seguros, com 75% do capital, e pela Tempo Assist, com 25%. A Tempo Assist se apresenta em seu site como uma empresa de capital aberto listada no Novo Mercado da BM&FBovespa. Segundo Maria Angélica, essa associação é característica da financeirização. “Para oferecer o seguro de saúde, a Caixa associou-se a uma administradora de saúde capitalizada por meio de ações na Bolsa, uma sociedade anônima. E, nesse ponto, ela está cumprindo um link que é típico da financeirização”.
Efeitos
Outro efeito da financeirização é a concentração do mercado. Fausto Pereira dos Santos, ex-diretor-presidente da ANS, explica que não há aumento no número de operadoras. “As operadoras estão ficando muito grandes, elas têm comprado umas às outras. Está havendo um processo de concentração. A Amil saiu de 600 mil para mais de três milhões de beneficiários, a Bradesco também tem hoje mais de três milhões, a Unimed, mais de um milhão. Hoje, menos de 40 operadoras tem mais de 60% do mercado”, afirma.
De acordo com a pesquisadora da ENSP, o fato já chamou a atenção do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), autarquia vinculada ao Ministério da Justiça que atua na fiscalização, prevenção e apuração de abusos de poder econômico. “A financeirização na saúde é grave, não é um fenômeno periférico. O fato de o Cade começar a ver concentração é sintomático. A tendência é outras empresas seguirem muito rapidamente esse caminho, criando um mercado cada vez mais oligopólico, que é o que aconteceu nos EUA na década de 1990”.
Regulação
Em 1998, com a promulgação da lei 9.656, conhecida como Lei Geral dos Planos, a situação não foi resolvida. “A lei dos planos é endógena. Foca em como o plano deve funcionar, qual é a capacidade econômica que uma operadora deve ter para vender plano de saúde, o que o plano precisa cobrir. De novo a legislação não falou do papel do privado na conformação de um sistema, de como deve se dar a relação entre o público e o privado, das responsabilidades. A exceção é o artigo 32, que prevê que as operadoras devem ressarcir o SUS quando seus beneficiários forem atendidos pelo sistema público, mas isso é muito pouco quando imaginamos o volume e a dimensão que o privado tem hoje no sistema de saúde brasileiro. Continuamos tendo um vazio jurídico na relação público-privado no Brasil”, expõe Fausto.
Assistência Integral
Fausto acrescenta que além de rever a questão da disputa pela rede prestadora e do funcionamento paralelo, um novo marco regulatório para o setor também deveria se posicionar em relação à renúncia fiscal. “Precisamos cortar alguns vasos comunicantes, como a isenção do Imposto de Renda. São questões que fazem com que hoje o setor público financie uma parte do mercado privado. Isso aumenta a iniquidade na medida em que o conjunto da população brasileira arca com a renúncia, que favorece um conjunto menor de pessoas”.
Para Maria Angélica, não existe hoje espaço político para a discussão de um marco regulatório amplo. “A discussão de regulação hoje ainda está muito técnica e incipiente. A pauta atual da ANS hoje está muito centrada na qualidade da prestação de serviços, na resolução das disputas entre prestadores e operadoras, que são discussões posteriores à regulação. O tema do marco regulatório, pensado de forma ampla, ainda não está na agenda nem da ANS nem do governo federal”. A opinião é compartilhada por Mário Scheffer: “Nos últimos anos, são vários exemplos e indícios de que cada vez mais o governo está abdicando do compromisso com o SUS universal e público como meta constitucional. Estamos assistindo a uma reforma do sistema de saúde sem nenhuma discussão do impacto disso. Podemos estar caminhando para a hegemonia do setor privado e a discussão se faz necessária até para avaliar a viabilidade de reverter ao público tudo o que está sendo entregue para o privado, porque podemos chegar a um ponto em que isso seja irreversível”.
Por Maíra Mathias
Da EPSJV
Att,
Diego Rangel Sobral - Presidente da LICAPS
Mayra Pontes - Integrante da LICAPS
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